pro futuro.
Larga esse celular, ele diz enquanto se aproxima com duas caipirinhas de limão nas mãos. Tava só me distraindo enquanto tu não chegava, respondo, largo o celular e estico as mãos para pegar a bebida para que ele possa sentar ao meu lado na areia quente. A praia aqui é mais bonita mesmo, disse ao pegar uma das bebidas da minha mão. Te disse, o litoral sul não é nada perto do norte, é o que respondo, ao que ele replica com agora entendo tua insistência pra passar um tempo aqui.
A caipirinha tá doce demais pro meu gosto, não sei qual o problema de diminuir um pouco a quantidade de açúcar. Se eu compro algo ácido, eu quero sentir a acidez. Mesmo que agora eu queira sentir doce. Tu sabe que eu vou mudar pra cá o mais rápido possível, né? Solto no ar e ele se afoga um pouco com a bebida. Como assim, Raul? diz em meio a tosse, Cansou da vida na cidade grande?
Ah, tu sabe que eu não me sinto legal naquele lugar desde que desembarquei lá. Tenho trinta e um anos e uma vida que muita gente poderia considerar fracassada no passado e eu não quero me desperdiçar vivendo na miserabilidade que os outros esperam que eu viva porque tive um casamento fracassado e tenho um trabalho de merda. Desde que botei o pé em Porto Alegre sinto que já vivi outras vidas lá e que não terminaram bem. Não quero que uma cidade largada às traças me transforme em alimento pra elas.
Mas tu disse que tava procurando o melhor, não tem melhor lá, Raul?
Não tem como encontrar o melhor em lugares que eu não pertenço, Saul. Porto Alegre me suga, não me deixa viver porque me deixa preso numa espiral terrorista de lugar que não evolui e não me deixa evoluir. Eu saí daqui pra me afastar de tudo que me lembrava de quem eu era e no fim me perdi de mim mesmo. Agora lembro de quem eu era e sinto saudade, e pode ser só isso mesmo, saudosismo, mas eu quero testar. Quero voltar e ser o meu melhor.
Se tu acha que é o certo, não tem o que fazer, Raul. Eu nunca voltaria pro litoral sul. Porto Alegre é um saco e nosso trabalho uma merda, mas tem coisas lá que me fazem bem e que eu não trocaria por nada. Se tu acredita que aqui é o teu lugar, tem que vir mesmo e curtir enquanto pode. Melhor se sentir miserável na frente desse mar do que na frente do Dilúvio, ele ri.
Pouco se fala, respondo, mas o que é que te faz tão bem em Porto Alegre que te faz não ter vontade de sair?
Nunca parei pra pensar exatamente, mas, ao mesmo tempo em que eu odeio tudo que me faz ter que andar pela cidade, eu sinto que tem alguma coisa que me faz querer chegar nos destinos, entende? Tipo no trabalho. Eu odeio aquele lugar, tenho vinte e nove anos, quase casei com alguém que não amava, fugi de tudo que tinha e odeio cada passo que eu dou quando vou para esse lugar que não me traz expectativa nenhuma de melhora de vida, mas eu te vejo lá e é legal passar o dia contigo, ter com quem falar e com quem dividir alguma coisa. Tu é uma das coisas que faz valer a pena. Fazia, agora.
Pois é, tu também é uma das poucas coisas que aquele lugar me trouxe de bom. Talvez a única. Mas um pró em uma lista com um milhão de contras não ajuda em nada. Piora tudo, na verdade. Porque a gente começa a se apegar nesse pró e aí os contras tomam conta da gente sem que nem tenhamos a chance de perceber e, no fim, ficamos ainda piores do que antes.
Faz sentido, ele deita levemente e aninha a cabeça no meu ombro. Ficamos assim por um tempo, apenas olhando as ondas calmas indo e vindo, a brisa balançando nossos cabelos e as caipirinhas já quentes nas nossas mãos.
É muito difícil tomar esse tipo de decisão. Sinto que nada do que faço é capaz de ter uma taxa de cem por cento de aprovação de mim mesmo. Sempre há algo me impedindo de ter plena certeza das decisões que tomo e dos destinos dos quais elas me levam.
Sabe, Raul, o que tu quer dizer quando me fala que eu sou uma das coisas que o trabalho trouxe de bom?
Exatamente isso. A única coisa que me faz ir até aquele lugar é tu. Eu não quero isso. Quero ter mais gana de viver, sabe? Quero sair por aí e saber que tu tá lá por mim, mas também saber que existem mais coisas pra viver por aí.
É estranho. Eu meio que também sinto isso contigo.
Sente?
É, mas não sei se da mesma forma.
Como assim, Saul?
É que é em ti que eu penso quando quero sair por aí. Não quero sair e chegar pra te contar, quero sair contigo. Quero viver a vida contigo. Tudo que tu faz é o que faz valer a pena pra mim e o que te faz bem me faz bem sempre. Tu fala de vir pra cá e eu penso que eu viria também se significasse estar contigo.
E por que não vem?
Eu não posso abandonar tudo lá por nada aqui, Raul. Por mais infeliz que eu seja.
Mas não é nada. Eu vou estar aqui.
Não como eu quero.
Como tu quer?
Ah, tu sabe já. No trabalho eles comentam sobre. Como somos unha e carne lá e como eles acham que temos alguma coisa, me aproximo um pouco mais dele.
E por que não temos?
Porque tu não quer, ele diz virando lentamente para me olhar nos olhos.
Quem disse que não?
Ninguém disse, eu só sei. Tu falou de vidas passadas e eu sinto que já nos conhecíamos em vidas passadas, mas que não terminou bem.
E tu acha que não terminaríamos bem agora?
Sim.
Por que?
Olha como tudo aqui é lindo. Olha esse sol se pondo, a luz batendo na gente e reluzindo nas nossas peles. As pessoas indo embora, indo viver a vida delas como estão acostumadas e a tranquilidade que tudo isso passa. Sente essa brisa, sente como estamos tranquilos conversando sobre o pior e o melhor da nossa vida. Agora me diz, tu acha que vai ser sempre assim? No momento que sairmos daqui vai tudo voltar ao normal e, no normal, tu acha que eu ainda vou ter um espaço aqui? e toca no meu peito.
Acho. Acho que não importa onde estamos o meu normal seria tu e tudo que a gente constrói juntos sempre. Eu não quero ser infeliz lá, eu não quero ser infeliz aqui. Te quero, é isso que eu quero, onde tu estiver, na real. Mas quero mais ainda se tiver comigo.
Tu sabe que o que dói não passa apenas estando comigo, né?
Mas melhora. Eu quero que passe e vou fazer o possível pra passar. Mas antes preciso que melhore, e tu melhora.
Tu também me melhora.
Então é um sim?
Pro quê?
Pro futuro.
É.
Que bom, pego a mão dele. Não consigo imaginar futuro sem ti.
Não existe futuro pra mim se tu não estiver nele, e aperta meus dedos.