(não) me solta.
ou raízes.
A única peça de roupa limpa que restava era um grande vestido cinza que ganhou dele há anos. Nunca se viu vestindo aquele pedaço de pano que não parecia cair bem em ninguém, mas, se era o que restava, não tinha muitas opções no momento. Era estranho estar tão isolada assim.
Desde que ele se foi ela estava mais solitária que nunca.
A verdade é que nunca houveram muitas pessoas com as quais ela pudesse entrar em contato. Quando resolveram ir para aquela casa atrás da floresta eram apenas os dois e um grande sonho jovem de se isolar da sociedade em busca de uma verdade que ninguém imagina qual seja. Era tudo mentira. Qual era seu sonho? O que realmente a fez acreditar que havia uma verdade a ser encontrada onde ninguém jamais encontrou? E que verdade era essa? Para haver uma verdade a ser descoberta era preciso que ela tivesse ao menos alguma dúvida para seguir e, com ele, ela não tinha dúvida alguma.
Talvez esse fosse o problema. A única pessoa atrás de alguma verdade ali era ele, enquanto, para ela, toda a verdade se concentrava em quem estava procurando. Ela nunca procurou, apenas seguiu o que achou que deveria seguir para que a sua vida pudesse continuar fazendo sentido enquanto ele procurava um motivo para que a dele fizesse também.
Pensando agora, ela solta uma leve risada. Como ela podia um dia ter pensado que seria feliz assim quando tudo que era estava sendo depositado em alguém que ainda não tinha se encontrado. Quando o que um imaginava para o outro nunca convergiu para ser uma coisa só.
A felicidade não durou um mês. Olhando em retrospecto, a dela talvez não tenha durado um dia sequer. Viveu na ilusão de que poderia ser feliz enquanto ele sorria e, agora que estava sem ele, não lembrava como essa ilusão um dia poderia ter passado por cima de tudo.
O vestido não era de todo feio, só não fazia parte do que ela um dia imaginou que poderia vir a ser. Olhando no espelho, ela pensa em como ele cobre cada parte do seu corpo. As únicas coisas visíveis são as suas mãos que sempre foram longas e magras demais, seu rosto pálido, seu cabelo preto e muito comprido e a vermelhidão dos seus olhos enquanto poucas lágrimas surgem junto com os pensamentos gritando que ela deve sair logo.
Vai sentir falta, como não sentiria? A infelicidade da vida que levava não a impediu de se acostumar com o que estava no seu entorno e agora ela precisava recriar toda a sua história para que o mundo viesse a conhecê-la de verdade quando nem ela mesmo se conhecia mais. Estava perdida e andou até a porta de casa em busca de um caminho para se encontrar.
O rangido da porta sendo aberta marcava um novo capítulo no que ela imaginava ser o resto da sua vida.
Um pé de cada vez, ela descia as escadas da entrada e se despedia de tudo que um dia teve para encontrar uma nova vida. Olhando para a frente ela via todas aquelas árvores da floresta que ele sempre disse ser muito perigosa para atravessar, apesar de ser o caminho mais rápido para sair dali. Ele nunca botou fé de que ela seria capaz de fazer algo que ele fazia com o que considerava maestria, mas ela se sentia capaz de seguir, capaz de fazer o que ele fazia todos os dias, enquanto ele nunca havia sido capaz de sequer se imaginar fazendo tudo que ela se empenhava em fazer para ele.
Caminhando lentamente, ela olhava em direção ao poço enquanto se aproximava. Estava fechado, ela se certificou de o manter fechado. A única água que estava ali no momento vinha das suas lágrimas cada vez mais frequentes à medida que se aproximava do grande círculo de pedra no gramado. Se alguém perguntasse, ele havia ido embora. Se alguém o encontrasse, ele havia caído em um acidente. Se alguém questionasse, ela saberia como se esquivar.
A floresta estava ali, logo em frente, cheia de árvores estupidamente grandes que faziam com que ela se sentisse ainda mais minúscula que o normal. As copas balançavam com a brisa leve e a sua visão embaçava só de se imaginar perdida lá dentro.
Estava determinada e sabia que conseguia, mas, enquanto andava para dentro da mata, seu cérebro insistia em dizer que o único lugar em que ela ficaria mais perdida que dentro da sua cabeça era naquela floresta. Mas se ela algum dia tivesse dado ouvidos ao que seu cérebro a dizia jamais estaria aqui nesse momento, talvez, na verdade, fosse ela no fundo daquele poço.
As árvores se agigantavam, crescendo cada vez mais a cada passo que ela dava para dentro da floresta. O dia não estava muito claro, nuvens cobriam todo o céu, deixando tudo quase tão cinzento quanto a mente dela, e as árvores que estavam deixando tudo num tom viridente que quase a tornava um pouco mais feliz aos poucos se tornavam sombrias ao longo do caminho. A esperança latente transmitida pelo que ela imaginava ser um leve frescor aos poucos se transformava em um puxar forçado no seu peito que a fazia quase gritar de dor se imaginando cada vez mais fundo nisso.
De repente, tudo some. Poucas folhas caem dos galhos e fazem um barulho juvenil que, enquanto simbolizava a morte de umas, também mostrava que outras estavam por nascer.
No escuro, enquanto acostumava o olhar com o lugar onde estava e com os conflitos dentro de si, ela imaginava o momento onde haveria o clarão. De certa forma sentia que o mato estava conectado com o que ela sentia naquele instante. Estava em uma escuridão sem fim e só conseguia pensar no momento em que ela iria embora e a deixaria em paz. Precisava se mexer, deixar o escuro para trás, mas já não sabia mais como seguir para fora dali. Nunca soube. Devia ter ouvido quando ele disse que ela não saberia.
Olhou para um lado, nada. Olhou para o outro, nada. A escuridão tomava conta, não havia maneira alguma de se acostumar com aquilo. Era como se ela crescesse mais e mais e se agigantasse para cima dela entrando pela sua boca entreaberta e sugando todo o ar preso dentro da garota. Ainda se sentia assim, uma garota.
Olhou para o céu desaparecido entre as árvores e deixou as lágrimas rolarem pelo seu rosto. Andou lentamente por caminhos que não conhecia. O som das folhas caindo ainda estava ali, somado com o som dos seus passos quebrando galhos secos e triturando as que já estavam no chão. Uma figada subia dos seus pés até os ombros. Estava cansada. Tudo que ela fez até agora tinha feito com que ficasse dessa forma antes mesmo de começar a jornada. O cansaço latente era uma maneira de se colocar em lugares onde ela não deveria estar apenas para que a sensação se tornasse um pouco passageira. Não podia se deixar vencer.
Depois de andar o que parecia ser um caminho infinito até a saída daquele lugar, ela finalmente conseguia ver ao longe uma luz. Havia algo no fim de tudo, ela conseguia enxergar uma saída de toda a escuridão que ficava para trás, de tudo que a fez duvidar de todas as suas capacidades. Estava longe, era verdade. Mas era como se a dor que ela sentia tivesse, de súbito, desaparecido e algo subisse do fundo do seu ser e fizesse com que um formigamento fosse crescendo ao redor das suas pernas e escalasse até seu peito repentinamente revigorando suas vontades e movimentando suas pernas até que ela começasse a correr.
Era uma corrida estranha. Não havia ninguém atrás dela, mas ela olhava para trás a cada passo com medo de que algo estivesse a perseguindo. O vestido voava e ela fugia. Fugia de um passado do qual ela implorava para seu cérebro esquecer. As folhas caíam, os galhos se partiam, as árvores iam lentamente libertando o céu cinza e iluminando o caminho. O vento batia em seu rosto e, de repente, suas mãos estavam no chão e sangue vertia das suas palmas. Olhou para trás, ninguém. Olhou para todos os lados com a respiração ofegante e procurava o que fez com que ela estivesse no chão agora. Não havia nada. Não era possível. Ele nunca estaria ali. Não tinha como. Não conseguia imaginar como ele poderia estar ali quando estava morto. Morto. Era essa a verdade. Ele se foi para nunca mais voltar e mesmo assim estava conseguindo fazer de tudo para que ela não conseguisse se livrar dele.
Algo começava a subir pelas suas pernas, agarrando o vestido e começando a apertá-lá para continuar ali. Raízes. As raízes queriam a obrigar a ficar em lugares onde ela não queria. A madeira subia aos poucos enquanto seu coração acelerava e ela usava as mãos machucadas para tentar se livrar do que estava a prendendo. Não sabia mais o quanto poderia aguentar. Não queria mais estar presa. Quanta tristeza cabia dentro de si para que ela conseguisse continuar viva depois de tantas coisas? Não conseguia se livrar daquele inferno singular de maneira alguma. Primeiro, achou que era questão de costume. Não era. Depois entendeu que o problema era ele. Deu um jeito. E agora estava correndo e estava tão, tão perto e, de repente, nem o lugar queria que ela encontrasse o que imaginava ser o melhor para si.
Tentava rastejar para fora dali. Se arrastava no chão, o sangue vertendo de cada um dos machucados abertos pelos galhos secos no chão. O barulho do vestido rasgando só não era mais ensurdecedor que seus gritos de dor enquanto tentava puxar suas pernas e desencaixar do que a prendia. Olhou para a luz da saída. Estava próxima.
Pedaços do vestido ficavam para trás. Absolutamente tudo que um dia foi comum para ela estava indo embora enquanto as raízes tentavam a manter dentro do que a prendia. Mas ela não ia ficar ali. Não importava quanto a machucasse ir embora, nunca machucaria mais que ficar. Ela sabia disso. Se livrou daquela roupa de merda. Não queria isso, nunca quis usá-la. Chutando as raízes, elas se afastavam. Corriam atrás dela, mas ela se arrastava em direção ao gramado limpo. Estava perto, mais perto que nunca. As raízes a alcançavam, a puxavam, ela chutava. Sangue vertia. Lágrimas caíam. O passado a perseguia. O perigo a machucava. A dor gritava. Ela gritava. A grama se aproximava e, então, ela a tocou.
Estava perdida, mas, no momento em que tocou o indicador na grama após a floresta soube que não importava o quanto ela tivesse perdido, agora ela havia se encontrado, isso era tudo.
Rastejou até se livrar de tudo que estava no escuro. Ficou deitada no gramado enquanto as raízes agora se afastavam. Se encolheu e chorou. Estava ali. Estava viva. Tinha saído e agora, finalmente, conseguia ver.