previsão de morte

Ádrian Oliveira
4 min readFeb 2, 2022

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Foi meu vô quem deu a ideia de que devíamos ir visitar a mãe dele naquele sábado de inverno que estava calor demais. Meus pais haviam ido passar o fim de semana na praia e éramos só eu e meus avós em casa, pensei que iria continuar sentado no sofá assistindo televisão com a minha avó, mas ela surpreendeu nós dois dizendo que estava com vontade de ir na casa da sogra mesmo.

Em menos de cinco minutos já estávamos na caminhonete fazendo o caminho com o qual eu era tão acostumado na infância. Eu odiava o fato da Santa Cecília ser mais quente que na minha casa e antes mesmo de descer eu já estava suando demais, quase que imediatamente me arrependendo da decisão de ter ido junto, mas ouvir a voz dela depois de tanto tempo me fez deixar qualquer arrependimento para trás.

一 Ah, minha filha, eu sabia que tu ia vir hoje, me preparei pra ti 一 ela disse para minha vó assim que a enxergou. Fomos rápidos para dentro da casa dela, para que ela não precisasse descer e subir as escadas da entrada. A mesa perto da porta mostrava que ela realmente estava preparada para receber a minha vó: um bolo que não era de chocolate e café Melitta, que ela pensava ainda ser o favorito de vó mesmo ela comprando apenas Caboclo há anos.

Sentamos no entorno da mesa para tomar o café enquanto meu vô e ela jogavam conversa fora, estava servindo o café na minha xícara quando ela parou abruptamente para me entregar uma nota de vinte reais.

一 Café não é coisa de criança, Bruno. Vai comprar uma Coca gelada pra ti tomar. 一 Disse ignorando totalmente o fato de eu ter 20 anos e de nunca ter me chamado Bruno, apesar dela me chamar assim desde a infância. Percebi que ela provavelmente queria conversar alguma coisa sozinha com meus avós e aceitei o dinheiro.

No caminho para o mercado fui admirando o caminho e pensando em como eu sentia saudade de passar tardes naquele lugar na infância. Era caótico, carros passando a toda velocidade, sol de rachar, cachorros latindo, mercados estranhos vendendo alguns produtos de qualidade duvidosa e pessoas gritando sem mais nem menos toda hora, mas mesmo assim me trazia um gostinho tão bom de paz. De respirar um ar novo mesmo sendo a mesma cidade onde eu moro e principalmente de conforto. Não existe sensação melhor do que chegar em algum lugar e se sentir a pessoa mais querida do mundo e a bisa Otelina tinha essa habilidade de tornar qualquer lugar confortável.

Comprei a Coca e voltei com ela em uma mão e o troco no outro. No portão eu já conseguia ouvir a conversa deles e, como o bom fofoqueiro que sou, parei para ouvir antes de subir as escadas para a casa. Não se ouvia a voz do meu vô, apenas da bisa perguntando se ele tinha feito as pazes com o irmão e que, se não, ela queria que ele fizesse logo porque odiava ver dois filhos dela brigados, como o Derci e o Vilson estavam agora. Minha vó respondia pelo marido e perguntava o que aconteceu para os cunhados estarem brigados.

一 Não interessa agora, minha filha. Só quero que eles façam as pazes antes de eu ir, tu era a única pessoa que faltava pra eu me despedir.

一 Para de falar besteira dona Otelina, a senhora tá bem saudável, ainda tem muito pela frente 一 minha vó respondia com aquela voz de quem tinha medo de assuntos relacionados a morte.

一 Maira, a próxima sou eu, já até separei uma roupa bonitinha pra ser encontrada com ela, é um casaco preto parecido com aquele teu vermelho que eu amo. Só quero ir sabendo que tá todo mundo bem e que consegui avisar vocês para se prepararem.

Decidi parar de ouvir e entrar na casa. O assunto mudou assim que passei pela porta e decidi não tocar nele mesmo vendo como meus avós estavam nitidamente abalados pelo que ela havia falado. Era besteira e definitivamente um delírio, e o fato da bisa não deixar o clima ficar fúnebre em nenhum momento depois só provava isso.

Servi meu copo de Coca-Cola mesmo estando doido por um cafézinho e começamos a conversar sobre a minha faculdade e como eu deveria ficar com o troco para comprar material pra eu usar. O assunto da morte logo foi esquecido e ela começou a falar sobre como tinha saudade de me ver pequenininho correndo por ali e como era bom poder ver o crescimento dos bisnetos dela. Meu vô finalmente voltou a falar, agora sobre como ele mal esperava por 2022 para poder votar no Lula de novo e tirar o Bolsonaro da presidência, minha vó deu risada e o assunto se tornou política, depois partiu para família, relacionamentos, voltou para estudos e então já era noite e precisávamos voltar para casa.

A despedida foi feliz, como sempre. Era estranho sair de um lugar com tanto gosto de lar para então voltar para casa mesmo, mas eu e minha vó prometemos ir mais até lá, como meu vô fazia toda semana, como fazíamos quando eu era criança. Ela disse que tinha ficado feliz com a nossa visita e que ia esperar a gente.

No outro dia acordei com meu celular tocando, minha mãe ligava para me avisar que a bisa morreu naquela madrugada.

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Written by Ádrian Oliveira

estudante de letras. escrevo de vez em quando, leio quase sempre. falo de livros no @adrianlendo no instagram. (ele/elu)

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