ficar aqui está me matando.
ou tela em branco
Sentou-se na frente da tela em branco e inspirou com força. Fechou os olhos e prendeu o ar por mais ou menos dez segundos antes de soltá-lo pela boca. Não sabia o que fazer e o prazo se apertava cada vez mais. A lembrança do professor a avisando que ela teria que repetir a disciplina caso não fizesse a entrega de mais uma tela viajava solta na sua mente, como que para lembrá-la a cada instante de que sua vida acadêmica estava indo de mal a pior e que a qualquer momento iria falhar de maneira irremediável. Começou o curso imaginando que ela era um grande quebra-cabeça a ser montado lentamente, mas agora era como se nenhuma peça tivesse o encaixe necessário para que ele finalmente pudesse ficar mais próximo de uma conclusão. A cabeça dela era uma caixa e ela tentava desesperadamente encontrar a peça perdida dentro dela para que a grande obra que ela estava construindo pudesse seguir em frente sem tantos empecilhos.
O que não ajudava em nada era o tema. Paz. Como assim, paz? Como encontrar inspiração para transmitir paz quando tudo que ela sentia dentro de si era caos e mais caos? Em qual posição de vulnerabilidade consigo mesma ela teria que se colocar para conseguir encontrar o mínimo de paz no fundo do seu ser e que, ainda por cima, conseguisse transmitir tal paz para quem fosse avaliar o seu trabalho? Não era boa com temas, odiava que alguém tivesse a autoridade para lhe pedir para fazer algo específico com a sua arte. Queria apenas se deixar livre e que o espectador encontrasse por si só a relação com o tema proposto. Não trabalhava bem com encomendas e talvez por isso não conseguisse finalizar metade dos projetos que começava, já que até mesmo o que seu cérebro pensava se esvaia com o tempo e outras coisas surgiam no caminho fazendo com que tudo ficasse para trás muito rápido.
Mas não era tempo de pensar nisso, precisava fazer o que ele queria, e precisava fazer isso correndo. A sala que ela reservara não iria ficar vazia para sempre e era a única no campus que era minimamente confortável para que conseguisse fazer o que era esperado.
Abriu os olhos e reparou em tudo ao seu redor. A sala era escura o suficiente para que não houvesse muito o que notar. Era diferente de todas as outras. Mais quente, mais acolhedora. Afastada de todos os pontos do prédio no qual passava muita gente a todo instante. Era inutilizada para aulas, muito escura para qualquer coisa que não envolvesse um projetor, por isso os professores já nem a procuravam mais, mas era muito querida entre os alunos que só queriam fugir um pouco. E por casais. Por isso estava quase sempre reservada.
Todas as cadeiras estavam amontoadas no fundo, deixando a maior parte do espaço livre para que ela pudesse se movimentar por aí. Não que fosse necessário, tudo que ela precisava estava ali ao seu lado, as tintas para a pintura, e na sua frente, a tela em branco com a janela que ia do chão ao teto servindo como entrada para iluminação. Gostava de estar sentada olhando a luz envolver aquele grande retângulo branco e ir diretamente para trás dela sem nunca a tocar. De alguma forma era como se ela estivesse invisível, como se a tela fosse, no fim, se pintar sozinha.
Pegou o pincel e um pouco de tinta. Azul. Azul traria o que ele queria, era cura, se afastar de qualquer mal e a leveza de se sentir aéreo em um local que transmite toda a calmaria existente. O oceano era o local mais calmo que ela conhecia, conseguia se imaginar lá, boiando em águas profundas e sentindo a sua pele quente do sol aos poucos ficar mais fria por causa de leves pingos de chuva que começavam a cair, anunciando que mais tarde ela poderia estar em casa tomando um chá enquanto ouve o barulho da água no telhado.
Estava passando o pincel livremente pela tela quando viu duas pessoas entrarem na sua visão. Do lado de fora da janela, os dois homens davam passos pesados pela grama. Um deles, o mais alto, gesticulava em direção ao prédio e parecia muito irritado com o que quer que havia acontecido. Por um instante ela pensou que algum deles pudesse perceber que havia alguém na sala virada diretamente para os dois, então apenas se encolheu atrás da tela enquanto ainda dava pinceladas breves do azul que havia pego antes, o oceano tomando forma com muito mais ondas do que ela pensou em fazer.
Ver tanta água a fez ficar com sede. Levantou e foi em busca da garrafa na sua mochila. Agora conseguia ouvir vozes ao fundo, cada vez mais altas, elas chegavam na sala sem pedir licença alguma. Os dois homens levantavam o tom a cada segundo, nunca o suficiente para que ela conseguisse identificar qualquer uma das palavras, mas o bastante para que ficasse atenta a qualquer coisa que poderia acontecer.
Voltou para o assento em frente à tela e ficou observando até ouvir um cala a porra da boca vindo do lado de fora. Olhou para o que estava acontecendo enquanto buscava mais tinta com o pincel.
O homem mais baixo agora estava gesticulando muito mais do que o outro no começo. Levantava seus braços ao mesmo tempo que a voz a cada fim de frase, olhava fundo nos olhos do mais alto como se apenas com um olhar ele fosse capaz de explodir a cabeça do outro. O pincel já não era mais leve na mão dela. Pincelava o oceano na tela com a mesma força que aquele homem lá fora colocava para fora com suas palavras, no mesmo ritmo em que ele grudava seu dedo indicador no peito do outro que dava pequenos passos para trás a cada toque.
Ambos pisavam com tanta força nos locais em que paravam que, de onde ela estava, era possível ver as marcas deixadas pelos sapatos na grama. O mais alto desistiu de ouvir o que o outro dizia e iniciou respostas ainda mais altas enquanto seu parceiro ainda estava falando. Era possível ver o cuspe saindo da boca de ambos da mesma maneira que a tinta voava do pincel a cada momento que ela ia para além do espaço que a tela ocupava. O tempo foi se fechando, nuvens tomando conta do céu enquanto os três respiravam pesado sentindo toda aquela iluminação ir embora. De dentro da sala a mulher conseguia notar como ambos já estavam cansados, o peito subindo e descendo com um ritmo incomum e as palavras sendo soltas sem nenhum escrúpulo. Se tivesse um fósforo daria um jeito de jogar ali, só para saber se era possível iniciar uma explosão apenas com o que estava no entorno deles.
Pegou mais tinta sem notar mais nada do que fazia, não conseguia mais prestar atenção na sua tela, não havia chances do seu olhar se voltar para qualquer coisa que não fosse aqueles dois. As lágrimas começaram a descer pelo rosto do mais alto segundos antes da água começar a cair do céu. Chuva leve, de verão, não forte o suficiente para fazer com que eles saíssem dali imediatamente.
Houve um instante, um segundo, em que, subitamente, ambos pararam de falar. Ela observava, atenta, os peitos de ambos subirem e descerem de forma altiva enquanto a chuva os deixava mais encharcados. Não era para estarem assim. Só estavam porque ficaram parados lá quando deveriam ter fugido, buscado conforto em um lugar seco e quente.
Não conseguia desgrudar o olhar do lado de fora da janela. As pinceladas seguiam o ritmo da respiração deles, lentamente se acalmando enquanto a água descia. Eles molhados como se estivessem naquele oceano que agora ela pintava empolgada.
O mais baixo abriu a boca para falar mais alguma coisa, ela pegou um pouco mais de tinta para fazer uma outra onda, ele fechou a boca, deu de ombros e desistiu de qualquer coisa que ia falar, ela fazia uma linha reta com o pincel, como se a onda fosse ocupar toda a extensão da tela, ele chutou uma pedra na direção do outro e virou para ir embora. Havia acabado, não tinha mais como prosseguir da maneira que eles estavam fazendo. O mais alto olhou para a pedra enquanto o outro seguia seu caminho para fora da visão que a janela era capaz de proporcionar, se abaixou, envolveu ela com sua mão direita, levantou e caminhou na direção do outro. Ergueu o braço e andou na direção do outro. Caminhava para trás da tela enquanto ela tentava ao máximo entender o que estava prestes a acontecer. Desceu o braço com força em direção a algo que ela já não conseguia mais ver. O pincel escapou de sua mão, jogando para todo lado a tinta vermelha que ela usava.